sexta-feira, 27 de junho de 2014

TRIBUNA LIVRE

 Carlos Nejar



 

Quando falamos sobre Jó, lembramos de frases como “a paciência de Jó”, “pobre feito Jó”, “a perseverança de Jó”. Jó é um personagem virtuoso e com um caráter bastante complexo.

Satanás, o Adversário, recebeu poderes para arruinar Jó. Deus autorizou-o a afligir Jó com sofrimentos e calamidades para testá-lo em sua sinceridade e piedade. Provando sua retidão, Jó finalmente é recompensado com redobrada prosperidade. Com restauração de sua posição material e social. Ao logo de sua provação, Jó não rejeitou a Deus, ao contrário, agarrou-se a Ele com desespero, com intimidade renovada.

A história de Jó mostra a insignificância do homem diante de Deus, a fugacidade e a ignorância da vida humana, o propósito disciplinador do infortúnio, o louvor a Deus, a felicidade do penitente.

Como são fortes as palavras de Jó: “Nu saí do ventre de minha mãe e nu voltarei para lá. O Senhor deu, o Senhor o tirou. Bendito seja o nome do Senhor.” Deus inverte constantemente as fortunas dos homens e a verdadeira sabedoria é muitas vezes inacessível.

Jó, que por um momento desejou não ter nascido, que expressou seu desejo de morte com paixão descontrolada, tornou-se porta-voz dos desgraçados e miseráveis da terra.



O escritor gaúcho Carlos Nejar, radicado agora em sua “Casa do Vento”, na Urca, Rio de Janeiro, membro da Academia Brasileira de Letras, escreveu um longo poema intitulado “O derradeiro Jó”, um monólogo em que o poeta se põe na pele da personagem dizendo: “Sou Jó/ o que não sabe,/ o que não viu/ o nome/ e é ninguém.”



Nejar lembra que, embora a mulher de Jó, em uma áspera e irônica discussão, tenha sugerido que ele amaldiçoasse a Deus e morresse de uma vez, Jó resistiu e não negou seu Deus: “E se quiseram que negasse/ Deus, não/ O neguei./ Pois o consigo ter debaixo dos escombros/ dos cacos surdos/ que da pele caem.”



O poeta continua seu canto doloroso, agônico, repetindo: “Sou Jó/ Eu, Jó/ Já sem amarras/ de algum possível vento”; “E eu, Jó,/ Sento-me à beira/ para colher prosódias e alfazemas”; “Eu, Jó, tiro o chapéu/ ao velho homem/ procurando a infância”. Lirismo puro, entre o sagrado e o profano. O poeta conclui: “Sou ninguém e Jó”.



Nejar também se refere aos amigos de Jó. Amigos acusadores, que zombaram dele, que o culparam, que alegaram que seu sofrimento deveria ser resultado de um pecado grave contra Deus e que Jó precisava arrepender-se de seus atos. Mas Jó tinha consciência de sua retidão e pega os amigos de surpresa com uma rebelião apaixonada contra o julgamento de Deus: “Zombas, tu que sabes/ quanto doem palavras”.



Jó torna-se a personificação da dor: “A dor tem rosto de homem./ A dor é Jó”. Nascidos para a miséria, quando sofremos, somos Jó. Mas a dor não é maior que a esperança e que o sonho: “Jó, o que recebeu/ em dobro de bens e soldo. O que não/ deixou que a dor/ fosse maior que o sonho,/ Com a fé acima/ das estrelas/ e sobre o firmamento./ E cuja sorte/ mudada foi,/ quando orava/ por seu povo.”



Também eu, num momento de dor extrema, escrevi este desabafo com a voz de um Jó:

 

Porqueele se tornou meuadversário,

Meuinimigo íntimo,

Ele, o maisbelo dos arcanjos,

O mais privilegiado de meusfrutos,

O maischegado a meuseio?

Porque discordou,

Não seguiu o caminho indicado

E inventou artes de guerracontramim?

 

Foi fogoque caiu do céu

E consumiu minhasovelhas?

Furacão do deserto

Que arrastou minhacasa?

Nuvem,

Eclipse,

Redemoinho?

Não vejo mais as estrelas da madrugada,

Minhavida é umbarco de junco

No marsalgado.

 

Alimento-me de suspiros,

Bebo a água de meusgemidos,

Mostra-me, Senhor, emque falhei,

Sou escravoexausto

Suplicando porsombra.

 

Ele cravou setas de venenoemmeuespírito,

Dá-me paciênciaparasuportar

Tamanhaagitação,

Tamanhaangústia:

Ele se tornou meuadversário,

Meuinimigoíntimo,

Justoele.

 

Quando nos resignamos e percebemos que somos poeira e cinza diante da grandeza cósmica, Deus pode sorrir e reverter a nossa sorte.

                                    CARLOS NEJAR

 

(Crônica extraída do livro QUARTO DE ARTISTA de Raquel Naveira)

 

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Crônica de Raquel Naveira

Tela de Van Gogh (1889)

Minuta de Diego Mendes Sousa

Da Academia Carioca de Letras

 

 

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