Jó
Carlos Nejar
JÓ
Quando falamos sobre Jó, lembramos de frases como “a
paciência de Jó”, “pobre feito Jó”, “a perseverança de Jó”. Jó é um personagem
virtuoso e com um caráter bastante complexo.
Satanás, o Adversário, recebeu poderes para arruinar Jó.
Deus autorizou-o a afligir Jó com sofrimentos e calamidades para testá-lo em sua
sinceridade e piedade. Provando sua retidão, Jó finalmente é recompensado com
redobrada prosperidade. Com restauração de sua posição material e social. Ao
logo de sua provação, Jó não rejeitou a Deus, ao contrário, agarrou-se a Ele com
desespero, com intimidade renovada.
A
história de Jó mostra a insignificância do homem diante de Deus, a fugacidade e
a ignorância da vida humana, o propósito disciplinador do infortúnio, o louvor a
Deus, a felicidade do penitente.
Como são fortes as palavras de Jó: “Nu saí do ventre de
minha mãe e nu voltarei para lá. O Senhor deu, o Senhor o tirou. Bendito seja o
nome do Senhor.” Deus inverte constantemente as fortunas dos homens e a
verdadeira sabedoria é muitas vezes inacessível.
Jó,
que por um momento desejou não ter nascido, que expressou seu desejo de morte
com paixão descontrolada, tornou-se porta-voz dos desgraçados e miseráveis da
terra.
O
escritor gaúcho Carlos Nejar, radicado agora em sua “Casa do Vento”, na Urca,
Rio de Janeiro, membro da Academia Brasileira de Letras, escreveu um longo poema
intitulado “O derradeiro Jó”, um monólogo em que o poeta se põe na pele da
personagem dizendo: “Sou Jó/ o que não sabe,/ o que não viu/ o nome/ e é
ninguém.”
Nejar lembra que, embora a mulher de Jó, em uma áspera e
irônica discussão, tenha sugerido que ele amaldiçoasse a Deus e morresse de uma
vez, Jó resistiu e não negou seu Deus: “E se quiseram que negasse/ Deus, não/ O
neguei./ Pois o consigo ter debaixo dos escombros/ dos cacos surdos/ que da pele
caem.”
O
poeta continua seu canto doloroso, agônico, repetindo: “Sou Jó/ Eu, Jó/ Já sem
amarras/ de algum possível vento”; “E eu, Jó,/ Sento-me à beira/ para colher
prosódias e alfazemas”; “Eu, Jó, tiro o chapéu/ ao velho homem/ procurando a
infância”. Lirismo puro, entre o sagrado e o profano. O poeta conclui: “Sou
ninguém e Jó”.
Nejar também se refere aos amigos de Jó. Amigos
acusadores, que zombaram dele, que o culparam, que alegaram que seu sofrimento
deveria ser resultado de um pecado grave contra Deus e que Jó precisava
arrepender-se de seus atos. Mas Jó tinha consciência de sua retidão e pega os
amigos de surpresa com uma rebelião apaixonada contra o julgamento de Deus:
“Zombas, tu que sabes/ quanto doem palavras”.
Jó
torna-se a personificação da dor: “A dor tem rosto de homem./ A dor é Jó”.
Nascidos para a miséria, quando sofremos, somos Jó. Mas a dor não é maior que a
esperança e que o sonho: “Jó, o que recebeu/ em dobro de bens e soldo. O que
não/ deixou que a dor/ fosse maior que o sonho,/ Com a fé acima/ das estrelas/ e
sobre o firmamento./ E cuja sorte/ mudada foi,/ quando orava/ por seu
povo.”
Também eu, num momento de dor extrema, escrevi este
desabafo com a voz de um Jó:
Porqueele se tornou
meuadversário,
Meuinimigo
íntimo,
Ele, o maisbelo dos
arcanjos,
O mais privilegiado de
meusfrutos,
O maischegado a
meuseio?
Porque
discordou,
Não seguiu o caminho
indicado
E inventou artes de
guerracontramim?
Foi fogoque caiu do
céu
E consumiu
minhasovelhas?
Furacão do
deserto
Que arrastou
minhacasa?
Nuvem,
Eclipse,
Redemoinho?
Não vejo mais as estrelas da
madrugada,
Minhavida é umbarco de
junco
No marsalgado.
Alimento-me de
suspiros,
Bebo a água de
meusgemidos,
Mostra-me, Senhor, emque
falhei,
Sou escravoexausto
Suplicando
porsombra.
Ele cravou setas de
venenoemmeuespírito,
Dá-me
paciênciaparasuportar
Tamanhaagitação,
Tamanhaangústia:
Ele se tornou
meuadversário,
Meuinimigoíntimo,
Justoele.
Quando nos resignamos e percebemos que somos poeira e
cinza diante da grandeza cósmica, Deus pode sorrir e reverter a nossa
sorte.
CARLOS NEJAR
(Crônica extraída do livro QUARTO DE
ARTISTA de Raquel Naveira)
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Crônica de Raquel Naveira
Tela de Van Gogh (1889)
Minuta de Diego Mendes Sousa
Da
Academia Carioca de Letras
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