quarta-feira, 16 de outubro de 2013


INOCÊNCIA

 

De repente, o tropel. Crescendo. Avolumando. Atrito estridente de cascos repercutindo no chão ressequido, coalhado de seixos. E logo, os gritos, o sibilar do açoite cortando a manhã. Então, o susto. O medo.

Tentou correr, peito em sobressalto, pernas frouxas, teimosas. Tropeçou. Pôs-se em joelhos, ainda gritou: - Pai!

Veio o primeiro golpe. Outro. E mais. Dilacerando, riscando vermelhos, rompendo tecidos. A força do braço e o peso do couro abrindo sulcos na pele. Baixou a cabeça vergando o dorso, encolhida, cobrindo-se com as mãos braços, escondendo o rosto. Zuniam correias bimbalhando guizos, ensurdecendo. Vociferava o velho ensandecido. E zapt! Descia o vergalho. Subia. E voltava. E voltava.

Caiu. Viu seus cabelos emaranharem-se nos gravetos da ravina, lameados de pranto e poeira. Viu o vestido, roto, manchado de barro e de sangue. Viu raiva, desgosto, humilhação, ressentimento e perda, no rosto convulso do pai. Viu a si mesma. A própria impotência. E tudo viu, aterrada, com olhos enormes, vidrados de dor.

Afinal, o silêncio. Já quase entardecia. Levantou-se, amolecida, um resto de estupor no fundo das pupilas, um cansaço quebrantado ao longo do corpo. Sacudiu a saia, ainda atordoada, e recolheu os cabelos junto ao pescoço. Sentiu frio. A lembrança de Cirino doeu fundo. Compreendeu que, nunca, nunca mais.

Tomou o caminho de casa. Sem pressa.

                                                                                     Clair de Mattos 

 

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